11.2.09

Belchior - Alucinação, 1976

Levei muito tempo para gostar de Belchior, assim como levei muito tempo para gostar de Ivan Lins. Hoje, com mais maturidade musical, retiro qualquer coisa que tenha dito de ruim dos dois, me redimo e digo que cada vez me surpreendo mais com eles.

Foi esse disco que me impulsionou a voltar para este blog que tanto gosto, mas que deixei guardado a um ano e tantos meses. O tenho ouvido a dias seguidos com muita atenção, com muito respeito e hoje ele é um dos discos mais fantásticos que já ouvi. O canto de Belchior é profético. É cortante, é sincero. Este disco é sentimento puro. As letras são pungentes, são desabafos, gritos de alerta, histórias de todos nós. É irresistível comentar faixa a faixa.

A faixa que abre o disco é
"Apenas Um Rapaz Latino-Americano"; um rapaz que vem do norte, comum como nós, abrindo os olhos das pessoas, dizendo que o "antigo compositor baiano que lhe dizia que tudo é divino, tudo é maravilhoso" já é antigo (Gilberto Gil, que nessa época era um Doce Bárbaro junto com Caetano, Gal e Bethânia); que tudo muda, que agora os tempos são outros.

"Sons, palavras são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém"

Tudo é proibido, ou melhor, tudo é permitido quando ninguém nos vê. Ao fim da canção, nada mais é divino, nada é maravilhoso, nada é secreto, nada mais mais é misterioso...

As faixas seguintes são "Velha Roupa Colorida" e "Como Nossos Pais", ambas projetadas na voz de Elis Regina e que em seus arranjos originais são bem diferentes. A primeira tem convenções misteriosas, violão de aço, slides, interpretação bem livre, um órgão bem presente - uma balada folk que diz que o passado é uma roupa que não nos serve mais, precisamos rejuvenecer.

"No presente, a mente, o corpo é diferente
e o passado é uma roupa que não nos serve mais"

A segunda recebe uma interpretação tão pungente como a de Elis e clama que temos que prestar atenção no que vivemos de verdade e não só nas "coisas que aprendemos nos discos".

"Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa".

"Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
é que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz."

Mas o tapa maior está nos próximos versos: O grande grito de revelação da nostalgia que nos inunda, é o que reverenciamos dos discos que ouvimos, é reconhecer que "nossos ídolos ainda são os mesmos", "que vivemos como nossos pais", que amamos o passado mesmo, que muitos não vêem que "o novo sempre vem". Mas Belchior segue com o pressentimento do "cheiro da nova estação", com a esperança cega, com a vida da cidade grande.

"Sujeito de Sorte" é uma música incrível, forte, positiva. Uma música fácil de imaginar na voz de Maria Bethânia. Uma música que eu quero cantar. Explica-se por si só.

"Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado: Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro"

A introdução de "Como o Diabo Gosta" tem um quê da intro de "Blackbird", dos Beatles. Nela ele diz que tudo está como o diabo gosta, sem regras, sem ordem. Um reflexo de seu tempo. Fim do lado A.

O lado B é aberto com a incrível faixa-título, "Alucinação".

"Eu não estou interessado em nenhuma teoria (...)
A minha alucinação é suportar o dia-a-dia
E o meu delírio é a experiência com coisas reais"

Nada é mais precioso do que as experiências reais. Nada vale mais do que o que é real, do que o que os olhos vêem. Saia às ruas. Preste atenção no seu próximo. Observe a vida com o coração. Perceba que não somos sozinhos. Essa é a real alucinação.

"(...)meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas dessas capitais
A violência da noite, o movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra
É demais!(...)"

"(...) Amar e mudar as coisas me interessa mais."

A faixa seguinte, "Não Leve Flores" traz um ar de leveza e de otimismo. Mais uma vez me lembro de Beatles, com os solos de guitarra de Rick. Um quê de Octopus's Garden no ar e o verso "Sempre é dia de ironia no meu coração" nos ouvidos.

"A Palo Seco" tem alguns dos versos mais lindos que já ouvi. É uma música triste, direta, mas docemente agressiva.

"(...)Sei que assim falando, pensas que esse desespero é moda em setenta e seis
Mas ando mesmo descontente,
Desesperadamente eu grito em português (...)"

"(...)Tenho vinte e cinco anos de sonho, de sangue e de América do Sul(...)"

"(...) E eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês."

Em seguida vem o ápice do disco, na minha opinião. "Fotografia 3X4" é cortante. É um relato real das experiências de tantas pessoas que saem de suas cidades para viverem nas grandes cidades, observações que nós que aqui moramos nunca fizemos, por já vivermos dentro do olho deste furacão. A canção começa com um canto vocalizado que é como um lamento e, entre versos reais, este lamento se repete. E entre tantas imagens que se passam, tantas constatações sobre a cidade e tantas confissões, o verso "Eu sou como você" finaliza o discurso. As histórias são iguais. Todos nós somos "rapazes latino-americanos", somos "como nosso pais", somos "sujeitos de sorte", temos as alucinações do dia-a-dia. Somos a multidão.

Para fechar o disco, a grande conclusão de tudo o que se desenvolveu pelas canções - "Antes do Fim"

"Quero desejar, antes do fim,
pra mim e os meus amigos,
muito amor e tudo mais;
que fiquem sempre jovens
e tenham as mãos limpas
e aprendam o delírio com coisas reais.

Não tome cuidado.
Não tome cuidado comigo:
o canto foi aprovado
e Deus é seu amigo.
Não tome cuidado.
Não tome cuidado comigo,
que eu não sou perigoso:
- Viver é que é o grande perigo"


...um disco maravilhoso e irresistível.

Viver é a grande Alucinação.